Descrição |
O bairro do Butantã é hoje um bairro de classe média, favorecido pela localização junto ao campus da Universidade de São Paulo, ao Instituto Butantã e, recentemente, privilegiada com uma linha do metrô, o que também tem causado o aumento da especulação imobiliária. No entanto, o bairro ainda é circundado por várias vilas erguidas pelas classes trabalhadoras, especialmente migrantes, que povoaram a região em meados do século passado. Uma dessas vilas, o Morro do Querosene, é conhecido pelas festas populares que lá acontecem, especialmente a festa do Boi Bumbá, em sua modalidade mais típica da região Nordeste.
A Escola Municipal Desembargador Amorim Lima tem sua história ligada ao bairro e às transformações que ele vem sofrendo e, é ela também autora e participante dessas transformações. Foi a partir de 1996, com a chegada de Ana Elisa Siqueira, atual diretora, que a escola passou a viver suas transformações mais profundas. Preocupada com a alta evasão – e ciente do triste fim que vinham a ter os alunos evadidos visto que, para muitos, era a escola o único vínculo social concreto – o primeiro esforço da nova diretoria foi no sentido de manter os alunos na escola, durante o maior tempo possível. Para isto, foi necessário melhorar os espaços internos, retirando alambrados e barreiras que impediam a livre circulação e a convivência agradável. A escola abria-se à comunidade e foi acolhida por pessoas da comunidade que marcaram a trajetória de mudanças, como a pernambucana Conceição Acioli e o mestre Alcides, da capoeira angola, entre outros.
Com apoio e o engajamento crescente dos pais e mães de alunos e da comunidade, a escola passou a oferecer atividades extracurriculares. Instalaram-se Oficinas de Cultura Brasileira, de Capoeira, de Educação Ambiental, de Teatro. A maior participação dos pais e mães passou a se refletir na organização das festas (Festa Junina, Festa da Cultura Brasileira, em agosto, Festa do Auto de Natal), na criação do Grupo de Teatro de Mães, no trabalho voluntário. Também se buscou parcerias com instituições privadas e fundações ligadas ao mundo empresarial.
Como metodologia, nesse momento da visita de campo, realizamos uma entrevista com a diretora Ana Elisa. Impressionou-nos a liberdade que os estudantes tinham para entrar na sala da direção (com demandas ou perguntas diversas), sempre chamando a diretora simplesmente por "Ana". Realizamos, também, uma roda de conversa com os professores. Na roda estiveram presentes: Mestre Alcides, professor de capoeira; Mestre Romão, professor de capoeira; Fofão, educador popular, dá aula de músicas, danças e festas populares, ensina percussão; Toni, o professor de música; Ana Elisa, diretora da escola; Pedro Pontual, colaborador da escola; Cely, colaboradora da escola.
No segundo momento de pesquisa do território de São Paulo, realizamos uma visita a Paraisópolis, que é uma das maiores favelas de São Paulo, localizada na zona sul da cidade, no bairro do Morumbi. A presença nordestina e, em especial, pernambucana é percebida no bar do Norte, no “sutaque” de alguns, já um pouco misturado com o paulista, e no nome de alguns equipamentos públicos: uma escola se chama Miguel Arraes e outra se chama Paulo Freire. E, depois, na roda de conversa realizada no Pro-Saber, essa presença é confirmada.
O Pró-Saber é uma ONG fundada por Maria Cecília Lins, nossa anfitriã carioca, que veio para São Paulo trabalhar no Hospital Albert Einstein. O foco principal do Pro-Saber é o trabalho com leitura, especialmente histórias literárias, e com brincadeiras, que já faz uma ponte tanto com as histórias, que alimentam a criação de personagens nas brincadeiras, quanto com a música, que alimentam brincadeiras cantadas. O espaço tem uma biblioteca infanto-juvenil com cerca de 14 mil livros, bem variada, com literatura de origem indígena, africana e afro-brasileira. Tem sala para atividades de alfabetização, tem sala para instrumentos musicais com baterias, tambores, alfaias e outros instrumentos. Tem uma grande sala para atividades múltiplas, por exemplo, para a transformação em cenário que serviu de base para os curtas que os adolescentes fizeram.
Como procedimentos metodológicos desse momento, foram realizadas rodas de conversa com voluntários e funcionários do pró-saber, observação da sessão de vídeos produzidos por participantes do projeto e entrevista com a coordenadora pedagógica.
Campinas/SP - Casa de Cultura Tainã
A Casa de Cultura Tainã é um ponto de cultura localizado na Vila Padre Manoel da Nóbrega, na cidade de Campinas – SP. Ela foi fundada em 1989 pelos moradores da associação do bairro Vila Castelo Branco e que deram a ela esse nome que significa “Encontro com as estrelas”, em tupi-guarani. O próprio nome já mostra como nos sentimos ao entrar e conhecer um pouco da história desse “quilombo urbano” no interior do Estado de São Paulo.
Ao chegar, uma casa com vários grafites e um pequeno parque infantil na frente, fomos recebidas por uma simpática anfitriã que nos pediu para esperar o nosso contato. Não ficamos paradas esperando e na conversa, surgiu a vontade de conhecer o espaço. Fomos explorando devagar: na sala de entrada vários instrumentos musicais de percussão figuram como parte da mobília e um piano instiga a curiosidade pelo funcionamento do local, por como os jovens que ali frequentam utilizam aquele espaço.
Pedimos para entrar numa outra sala onde encontramos uma exposição de fotos e no centro da sala, vicejava uma muda de baobá. Ao fundo instrumentos de percussão e caixas de som também repousavam. Um espaço vivo, apesar de não estarem presentes os construtores. Luciana, nossa anfitriã, nos contou a respeito da exposição: imagens de quilombos e quilombolas realizadas pelo Brasil em viagens feitas através do projeto da Rede Mocambos. A responsável pelas fotos é a jovem Laila, filha da casa e do projeto que nasceu há quase trinta anos na cidade de Campinas, idealizado e liderado por TC.
Após nos deslumbrarmos com as fotos e o ambiente, ainda conversando e vendo o movimento por causa da preparação de uma festa que ocorreria naquele dia, conhecemos também uma sala de informática e uma biblioteca.
Logo TC chegou e recebeu-nos com um café e uma longa conversa na cozinha. E esse café nos revelou muito: de onde veio aquele homem alto e com olhar desafiador, de que forma chegou a conclusão de que sua vida não seria com base no que a escola capitalista lhe ditava e qual era sua fonte de aprendizagem para a vida: a música. TC contou-nos que desde pequeno, não gostava da organização e hierarquia imposta pela instituição escolar e que se rebelava, sendo identificado como alguém “indomável”. Identificava desde muito pequeno as manifestações racistas nos núcleos e círculos sociais de uma cidade que foi a última no Brasil a abolir a escravidão dos negros. Como negro, de família de trabalhadores negros, conheceu a história desse lugar que tentavam colocar os “ex-escravos”, em bairros a margem da cultura dominante e do espaço dos brancos. O bairro de onde veio, São Bernardo, teria sido o reduto desse povo expulso do centro de Campinas e se tornado uma fonte de trocas e sociabilidade.
Contou-nos com orgulho que acompanhava um tio nos bailes do clube onde só frequentavam os trabalhadores negros e foi aí que aprendeu a tocar, a se configurar como músico e parte da cultura afro-descendente. E a partir das influências da cultura negra, com a consciência e identidade negra aguçadas pelo preconceito e racismo naturalizado na cidade, contribuiu para a construção dos projetos que hoje a Casa de Cultura Tainã desenvolve como entidade autônoma.
Como não se sentiu a vontade para gravar entrevistas, foi soltando-se aos poucos e revelando seu vínculo principalmente com um dos projetos da casa – a Rede Mocambos. Este é uma rede de comunicação constituída entre pontos de cultura iorubá onde a centralidade se dá na reconstituição do vínculo do povo negro com sua ancestralidade através do cultivo do baobá. Esse resgate da cultura negra ancestral tornou-se o elo de ligação entre diversas comunidades no Brasil e na América Latina e configurou-se numa forma de resistência entre as diversas tecnologia de informação e comunicação existentes na atualidade. TC contou-nos como foi constituído um sistema criptografado e um processador próprio para trocas de informações entre os pontos participantes e estreitamento do convívio entre povos irmãos em origem e cultura. Exibiu um dos vídeos produzidos pela rede, na qual se expõe a experiência do significado do cultivo dos baobás e ensinou como funciona a rede e o acesso a ela.
Durante as várias trocas, chegou a jovem filha de TC e fotógrafa responsável pela exposição comentada no início do relato. Esta compôs nossas conversas e contou-nos um pouco como foi crescer num núcleo de vivências musicais e formativas nos quais sua visão e consciência de sua existência tornaram-se muito além do que o ensino escolar e o trabalho poderiam ensinar. Enquanto fazia para nós um suco verde com ervas colhidas do quintal da Casa Tainã, contou-nos como foi circular por vários quilombos fotografando e convivendo com as pessoas de outros estados brasileiros, falou de sua experiência tocando nos Tambores de Aço com outros jovens e de sua ligação com a educação popular no bairro.
Além da Rede Mocambos, a Casa de Cultura Tainã desenvolve os seguintes projetos: Nação Tainâ, Biblioteca Comunitária Lidas e Letras, a Orquestra de Tambores de Aço e o Tambor Menino. Esses projetos envolvem mais de 400 jovens na região metropolitana de Campinas, além de ter interlocução com muitos outros núcleos e pontos de cultura dentro e fora de Campinas, sendo conhecida internacionalmente por seu trabalho que liga tecnologia de comunicação e identidade cultural.
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